Por que razões as sociedades comerciais deveriam conceder um peso maior ao voto de certos acionistas, e como não ferir a isonomia entre os investidores?

Nas sociedades anônimas brasileiras, que são regidas pela Lei 6.404/76, impera o princípio de que a cada ação ordinária corresponde um voto nas deliberações sociais. Nessa mesma linha, é vedado atribuir voto plural a qualquer classe de ações, conforme dispõe a lei.
Tal regra, porém, pode ser alterada num futuro próximo, visto que a Medida Provisória nº 1.040 do Governo Federal, de março de 2021, ainda em vigor e no processo de possível conversão em lei, passa por revisão pelo Congresso Nacional e sofreu ajustes ao tramitar pela Câmara dos Deputados, que nela acresceu a previsão do voto plural e assim submeteu o projeto ao Senado.
Para esclarecer o contexto em que se insere a MP nº 1.040, deve-se ter em mente que ela pretende reduzir a burocracia relacionada à abertura, legalização e operação das empresas, com vistas à melhora da posição do país nos rankings internacionais de ambiente de negócios (como os intitulados Doing Business e similares). Uma das preocupações já presente no texto original é quanto à proteção dos sócios minoritários, que ganharam algumas prerrogativas que os beneficiam.
Agora, pelo texto alterado e proposto pela Câmara, a Lei das Sociedades Anônimas passaria a admitir novas classes de ações ordinárias com a prerrogativa de usar o voto plural, admitindo-se um limite máximo de 10 votos por ação. Esta possibilidade se aplica somente às companhias fechadas e, com restrições, às abertas. No caso destas, dependerão de não ter tido quaisquer de suas ações ou títulos conversíveis em ações negociados no mercado, quando da criação das novas classes com o referido benefício. O quórum de aprovação proposto para a instituição do voto plural é de metade dos votos de detentores de ações ordinárias e das preferenciais.
Garante-se aos dissidentes a possibilidade de se retirarem da companhia, mediante operação reembolso, exceto se a criação das ações com voto plural já estivesse prevista ou autorizada no estatuto.
A duração do voto plural em cada companhia poderá ser estipulada no estatuto, seja condicionada a um evento ou termo, seja pelo atingimento de um prazo máximo, que foi estipulado em 7 anos – é o que se denomina de sunset clause. Não é proibida a sua renovação, mas, na deliberação respectiva, ficam os acionistas beneficiários do voto plural impedidos de votar.
As ações voltam a ter o peso de um único voto em caso de sua transferência a terceiros, exceto se o alienante permanecer como seu beneficiário final e no controle dos direitos políticos que as ações conferem ou, ainda, se o receptor das ações já for titular de ações com os mesmos direitos.
O voto plural não se aplica nos casos em que a legislação previr quóruns baseados em percentuais de ações ou do capital social, sem menção ao número de votos conferidos pelas ações.
As companhias abertas que adotam voto plural não poderão participar de operações de incorporação, incorporação de ações e fusão de outras companhias abertas que não adotem essa modalidade de votos. Da mesma forma, não poderá haver cisão de companhia negociada em bolsa e que não adote o voto plural, para constituição de novas companhias ou incorporação da parcela cindida em companhia que o adote.
Alguns temas de deliberação pelos acionistas não serão afetados pelo voto diferenciado, o que inclui a remuneração de administradores e transações relevantes com partes relacionadas.
Ainda que haja mera expectativa de aprovação destas mudanças, visto que ainda dependem de aprovação no Senado e sanção presidencial, o tema é interessante do ponto de vista do Direito Societário.
Dentre os principais fundamentos da atribuição de um peso diferenciado aos votos de certos acionistas, majoritários ou não, é o reconhecimento das contribuições especiais que certos acionistas podem dar à sociedade. É o caso, bastante comum atualmente, de empresas inovadoras e bem-sucedidas, muitas vezes no campo da tecnologia, fundadas e geridas por pessoas talentosas cujas figuras são intimamente ligadas ao negócio e à sua imagem perante o mercado.
É compreensível a necessidade de manutenção de certa autonomia nas mãos dos fundadores, quando estes já possuem demonstrada habilidade em conduzir o negócio, ainda que dependam de acesso ao grande capital para crescer e, com isto, beneficiarem a si próprios e aos demais acionistas, grandes ou pequenos, responsáveis pelo financiamento da empresa.
Não se trata de um desrespeito à posição dos minoritários, na medida em que o voto plural seja concedido precisamente com o objetivo de assegurar a maximização de ganhos (e desde que os demais sócios concordem e consintam com isto).
As limitações propostas na aludida Medida Provisória, finalmente, vêm sofrendo críticas de juristas e do mercado. Pelas razões expostas acima, é plausível que certos privilégios sirvam para beneficiar o interesse social e gerar ganhos a todos os acionistas. Ao instituir limites à quantidade de votos adicionais, ou limites temporais para seu exercício, por exemplo, a lei proposta termina por tolher essa iniciativa, que poderia ser melhor regulada pelo próprio mercado e pela confiança dos investidores.
Orlando Parente da Camara Filho foi graduado na Universidade Federal do Amazonas, em 2002. Pós-graduado em Direito Contratual e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Secção de São Paulo, desde 2004 e da American Bar Association.