Tratando ainda sobre a impenhorabilidade de imóvel caracterizado como bem de família, em continuidade ao artigo informativo anterior¹ que comentou recente decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca da impenhorabilidade de bem de família dado em caução de contrato de locação não residencial, o Supremo Tribunal Federal reacende, uma discussão que se entendia estar pacificada: a (im)penhorabilidade de bem de família do fiador de contrato de locação não residencial.
Tema tormentoso desde a elaboração da Lei nº 8.009/90, a impenhorabilidade de um bem tido como familiar, ou seja, do imóvel residencial da entidade familiar que garante o direito de habitação previsto na Constituição Federal, tem passado por diversas interpretações em seus 30 anos de vigência.
Uma das mais relevantes diz respeito à penhorabilidade do único imóvel de propriedade do fiador em contrato de locação. A previsão excepcional de penhorabilidade foi inserida em 1991 pela Lei do Inquilinato como meio de garantir o adimplemento contratual em favor do locador. Nesse sentido, o art. 3º, da Lei 8.009/90 passou a vigorar da seguinte forma:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
[…]
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Em decorrência disto, passou a se questionar, perante o STF, acerca da constitucionalidade deste inciso, pois estaria restringindo, em tese, o direito à moradia previsto no art. 6º, da Constituição Federal.
Diante desta provocação, após diversos casos julgados pelo Supremo Tribunal, com o fito de assentar o entendimento jurisprudencial majoritário desde 2006², em 2010 elaborou-se o tema nº 295 em sede de repercussão geral que sedimentou a interpretação de que o imóvel bem de família do fiador do contrato de locação seria penhorável³.
Com a pacificação da controvérsia emanada pela Corte Constitucional do País, o Superior Tribunal de Justiça – competente para solucionar questões infraconstitucionais – e os demais tribunais do Brasil passaram a julgar os casos de acordo. A exemplo disto, tem-se a aprovação da Súmula nº 549 do STJ, de outubro de 2015:
Súmula 549 – É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação. (Segunda Seção, julgado em 14/10/2015)
Todavia, a partir de 2018, retomou-se uma onda interpretativa sobre a eventual abrangência da regra excepcional da penhorabilidade do único imóvel do fiador em contrato de locação fazendo, assim, a distinção entre a locação residencial e a locação comercial não abarcada pela Lei.
Através de um precedente solitário, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 605709/SP, em que pese a própria lei não ter diferenciado os tipos de locação para permitir a penhorabilidade excepcional aqui comentada, no intuito de proteger o direito à moradia do fiador, a Ministra Rosa Weber elaborou voto que configurou a impenhorabilidade do bem de família do fiador na locação comercial, seguida pela maioria dos ministros da 1ª Turma do STF.
Esta decisão, inédita desde 2010, influenciou diversos tribunais do País, que passaram a seguir esta corrente que sequer está estabilizada, visto que ainda pendem de julgamento recurso interposto contra o referido acórdão. As consequências, contudo, já são visíveis, visto que a preservação dos bens do devedor e seu fiador estão salvaguardados pela inovadora corrente.
De 2018 para cá, notando a necessidade de se restabelecer a segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal, em março de 2021, ao apreciar o Recurso Extraordinário 1307334/SP, decidiu por reconhecer a existência de repercussão geral do tema, ressaltando novamente a distinção com relação ao tema 295 do RE 612.360 para dirimir a questão sob o prisma da locação não residencial.
Apesar de se tratar de um cristalino caso de ativismo judicial, pois a lei não fez a distinção então reconhecida pelo STF quando poderia fazê-lo, como o fez em toda a Lei do Inquilinato, uma vez reconhecida a repercussão geral, restará acompanhar o resultado do julgamento da matéria de fundo ser ainda iniciado. Entretanto, considerando o cenário de evidente insegurança jurídica causado pela própria Corte Constitucional que causa reflexos em uma gama de contratos locatícios, é pertinente alertar a prudência na elaboração de contratos deste tipo, principalmente no que toca as diligências para garantia do cumprimento contratual e constituição de fiador capaz de assegurar o adimplemento das obrigações contraídas.
¹ “Da Impenhorabilidade de Bem de Família ofertado em caução de contrato de locação em https://tmbj.com.br/da-impenhorabilidade-de-bem-de-familia-ofertado-em-caucao-de-contrato-de-locacao
² RE 407688, Re. Min. Cezar Peluso, Pleno, j. em 08/02/2006).
Igor Daniel Petters Duarte é advogado da área de contencioso cível da Thomazinho, Monteiro, Bellangero e Jorge Sociedade de Advogados e pós-graduando em direito processual civil pela PUC-SP.