O bem de família, originado na República do Texas em 1839, como um meio de proteger as pequenas propriedades mantidas pelas famílias que, num ambiente de economia hostil aplacada pela Crise de 1837, histórico momento em que houve um elevadíssimo número de falências de empresas no território americano.

Objeto de muito estudo desde então, o instituto de bem de família somente veio a ser regulado no Brasil em 1990, quando a Medida Provisória nº 143/90 foi convertida na Lei 8.009/90, mas passados trinta anos de vigência, ainda repercute nas relações havidas entre as partes.

Visando concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e de garantir o direito fundamental à moradia previstos na Constituição Federal, o bem de família envolve o domicílio da entidade familiar para protegê-lo de eventual perda do bem para pagamento de dívidas. Em outras palavras, o imóvel consagrado como bem de família é impenhorável.

Trata-se, portanto, de instituto robusto para amparo e estabilidade da família – base de toda sociedade – e, consequentemente, de manutenção do Estado que, sem a primeira, não existiria.

No entanto, dados os fenômenos econômicos atuais de nosso País, semelhantes aquele que o originou, referido instituto tem sido colocado à prova de diversas maneiras.

Exemplo disto é a quantidade de julgados sobre o tema. Em recente pesquisa sobre o tema em ferramenta disponibilizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, encontrou-se mais de sete mil casos julgados desta matéria entre os meses março a dezembro de 2020, um aumento de 10% sobre o número constante do mesmo interstício no ano de 2019.

Uma das polêmicas encontradas é a de se permitir interpretação extensiva às hipóteses permissivas de penhora do bem de família. Como se sabe, a impenhorabilidade da propriedade familiar não é absoluta, existindo assim a possibilidade de o credor buscar o pagamento de seu crédito através da propriedade do devedor.

Uma das exceções previstas em Lei é a da penhorabilidade do imóvel para pagamento da obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação¹. Nesta hipótese, o fiador da relação locatícia, se acionado a quitar a dívida contraída, não possui a proteção legal da impenhorabilidade do bem de família.

Outra exceção à impenhorabilidade do bem se configura quando há execução de hipoteca constituída sobre o imóvel oferecido como garantia (real) pela família.

Existem, contudo, contratos de locação de imóveis onde se prevê a caução imobiliária como forma de garantia contratual. Nessa situação, considerando que a garantia oferecida envolve um bem imóvel, seria possível buscar o pagamento de eventual débito através desta garantia? Poderia o devedor suscitar a salvaguarda do bem de família para evitar a perda de sua moradia, ainda que oferecida espontaneamente quando da assinatura do contrato?

Em recente julgado², o Superior Tribunal de Justiça enfatizou que as exceções à impenhorabilidade do bem de família não comportam interpretação extensiva, sendo imprescindível a condição exata da hipótese prevista em lei para prosseguimento da penhora.

No caso em questão, o credor busca o pagamento de dívida oriunda de contrato de locação através da penhora de bem imóvel dado como garantia (caução) da obrigação contraída.

Ocorre que, uma vez ciente da pretensão do credor, o devedor apontou que o referido bem perseguido se tratava de bem de família, ou seja, seria impenhorável.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, interpretando o disposto na Lei 8.009/90, entendeu que, pelo fato de a caução se assemelhar à hipoteca, a impenhorabilidade do bem de família não recairia ao imóvel em questão, permitindo, assim, a respectiva penhora para pagamento da dívida em favor do credor. Importante consignar que, apesar de o raciocínio ser compreensível, a exceção não discorre exatamente desta forma.

Com isso, uma vez levada a questão ao STJ, fundamentando-se na condição do devedor que, no caso, não seria fiador, somado ao fato de que eventual hipoteca – se constituída – não fora dada para garantia de imóvel do próprio devedor, este Órgão reformou a decisão do Tribunal de São Paulo para reconhecer a impenhorabilidade do bem.

Portanto, considerando que há distinção entre os institutos da caução e da fiança, havendo discriminação expressa na Lei de Locações e, levando em conta que a Lei 8.009/90 não admite interpretação extensiva quanto às exceções de garantia da impenhorabilidade do bem de família, o bem imóvel ofertado em caução para garantia locatícia de terceiros é impenhorável, se constantes as características previstas na Lei 8.009/90 e assentadas pela jurisprudência³.

Desta forma, salientada mais uma vez a interpretação restritiva quanto às hipóteses excepcionais de penhorabilidade de bem de família, caberá aos locadores de imóveis, se optarem pela caução imobiliária como garantia da obrigação contraída pelo locatário, a adequarem as disposições contratuais para se evitar infortúnios.

[1] Art. 3º. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: […] VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. 

[2] REsp 1873209/SP, 3ª Turma, Relª. Minª Nancy Andrighi. DJe 01/12/2020.

[3] Ser o imóvel único residencial (ou cujos frutos sejam imprescindíveis para a subsistência) próprio da entidade familiar, respectivos bens (desde que quitados), benfeitorias ou plantações.

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Igor Daniel Petters DuarteIgor Daniel Petters Duarte é advogado da área de contencioso cível da Thomazinho, Monteiro, Bellangero e Jorge Sociedade de Advogados e pós-graduando em direito processual civil pela PUC-SP.