Vários são os conceitos da continuidade da vida, quer pela memória dos familiares, quer pelo amor das pessoas com quem o falecido conviveu, quer pelas crenças em geral.

Questão que vem à tona, interligada ao tema ora abordado, são as considerações acerca do testamento afetivo, objeto, aliás, de debates e reflexões no meio jurídico.

O nosso Código Civil regula a sucessão dos direitos patrimoniais, entretanto os direitos extrapatrimoniais não são transmitidos automaticamente aos herdeiros, mormente quando se tratam de direitos personalíssimos que se extinguem com a morte.

É certo que os bens imateriais, se tiverem valor patrimonial poderão ser objeto de transmissão automática aos herdeiros, os quais adquirem a faculdade de explorá-los economicamente.

Todavia, se os bens forem incorpóreos e não possuírem, num primeiro momento, valor patrimonial, não serão transmitidos automaticamente aos herdeiros, até mesmo por falta de previsão legal.

Muitos juristas entendem que esses bens têm natureza personalíssima e se extinguem com o falecido.

Por essa razão, a fim de evitar discussões que acabarão chegando ao Poder Judiciário, as reflexões jurídicas levam à recomendação de se fazer um testamento que destine a herança intangível aos herdeiros ou legatários de acordo com a vontade do titular desses bens incorpóreos.

Ao contrário do Código Civil de 1916, o Código Civil vigente permite a elaboração de testamento com conteúdo não patrimonial (artigo 1.857, § 2º). Essa previsão permite que os interessados destinem os seus bens extrapatrimoniais a pessoas que não sejam necessariamente seus herdeiros legítimos.

herança digital 2Observe-se que, especificamente, no caso de bens ou conteúdos digitais, há os de valor econômico como músicas, textos literários e outros similares e os bens imateriais de natureza personalíssima como uma página em rede social, realidade mais do que presente na vida das pessoas nos dias de hoje.

Há uma preocupação do legislador com o tema, haja vista a tramitação de projetos de lei definindo a herança digital e visando disciplinar a transmissão desta aos herdeiros legítimos, caso não haja testamento por parte do titular dos bens digitais.

O Projeto de Lei 4847/2012 acrescenta à Lei 10.406/2002 (Código Civil), artigos que definem e preveem a transmissão de bens digitais. A justificativa, inserida pelo autor do projeto é a de que tudo o que é possível guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos, passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada “herança digital”. Segundo uma reportagem da Folha de S. Paulo (Caderno TEC) sobre herança digital, uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres), o estudo mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já estão incluindo em testamentos a pessoa que herdará seu legado virtual, ou seja, vídeos, livros, músicas, fotos e e-mails.

No Brasil, esse conceito de herança digital ainda é pouco difundido, mas é preciso uma legislação apropriada para que as pessoas, ao morrerem, possam ter seus direitos resguardados, a começar pela simples decisão de escolher a quem deixar a senha de suas contas virtuais e também o seu legado digital. Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, o referido Projeto de Lei pretende assegurar o direito dos familiares em gerir o legado digital daqueles que já se foram. Vejamos o texto de Lei:

Da Herança Digital
“Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:
I – senhas;
II – redes sociais;
III – contas da Internet;
IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I – definir o destino das contas do falecido;
a) – transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;
b) – apagar todos os dados do usuário ou;
c) – remover a conta do antigo usuário.”

Concomitantemente, tramita Projeto de Lei com o fito de acrescentar disposições à Lei sobre o Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 23/04/14), também, conferindo aos sucessores legítimos o poder de decisão sobre o conteúdo digital de seus parentes, a saber:

Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.
§ 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.
§ 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.
§ 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.

A justificativa do autor para esse texto é a de que “com o avanço da internet no dia-a- dia das pessoas, o uso das chamadas redes sociais tem se tornado cada vez mais frequente, havendo notícia de que, em 2015, o Facebook tenha alcançado a marca de
um bilhão de usuários, o que significa dizer que aproximadamente um em cada sete habitantes do mundo tem acesso a essa aplicação de internet. Além disso, há outros meios que são utilizados como o Twitter, Instagram e Google. Muitos desses perfis
ficam nas redes sociais mesmo após a morte das pessoas, levando, muitas vezes, sofrimento aos parentes e entes queridos que se deparam com eles, ainda que involuntariamente.

Algumas redes sociais já oferecem um código de conduta para situações similares, oferecendo ao usuário a forma de procedimento no caso de falecimento. Isto foi pensado justamente para evitar a situação de sofrimento para os parentes e
uniformizar o procedimento de conduta, foi proposta a Lei, com alguns requisitos que estão insertos nos dispositivos mencionados, visando uniformizar as soluções.

Não se olvide que a Lei 13.709, de 14/08/18, que entrará em vigor em fevereiro de 2020, dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o fito de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade.

Ora, é fato que o tema digital tem sido utilizado, atualmente, de forma intensa, mas, certamente, sem a preocupação do que ocorrerá no futuro com os seus dados, mormente, no âmbito sucessório.

Todavia, considerando que muitos conteúdos de natureza digital são de natureza personalíssima, no âmbito do direito poder-se-ia afirmar que este direito suplantaria o direito à sucessão legítima. Nesse contexto, a herança digital não haveria de ser transmitida tomando-se por base os mesmos princípios aplicáveis à herança patrimonial, pois, além de afetar o direito à intimidade do próprio titular, poderiam, quiçá, invadir a privacidade de terceiros que mantinham relacionamento com o titular
da herança.

Evidentemente, o tema é atraente e infinito, na acepção da palavra, motivo pelo qual, enquanto não houver uma definição de como se destinar a herança digital de forma regular em termos legais, a melhor alternativa será a elaboração de um testamento ou codicilo que abarque os bens de natureza personalíssima: a herança digital.

E. Ideli Silva é Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especializada em Direito Privado, Direito Processual Civil e Direito de Família.